Roberto Cordovani vive cortesã em A Dama das Camélias e analisa: “Estamos marginalizados na afetividade”

Roberto Cordovani | Foto: Marcus Castro

Personagem icônica do imaginário cultural ocidental desde o final do século XIX, Marguerite Gautier, a clássica cortesã de A Dama das Camélias, obra do romancista Alexandre Dumas Filho, já ganhou vida das mais diversas formas. Foi uma inspiradora personagem literária, até ganhar os palcos em uma peça de teatro e, por fim, em uma ópera que, já próximo à virada do século XX, se sagrou uma das melhores e mais conhecidas de seu autor, o italiano Giuseppe Verdi.

Depois, para ganhar as telas da engenhosa máquina cinematográfica, bastou a indústria se estabilizar, e em 1915 foi lançada a primeira adaptação cinematográfica da obra do escritor francês, Camille, dirigido por Albert Capellani e estrelado por Clara Kimball Young, uma das principais estrelas do cinema mudo que, assim como outras contemporâneas, o tempo cuidou de varrer da memória ocidental.

Desta primeira adaptação, outras seguiram, em produções francesas, alemãs e italianas, até que em 1937, foi a vez da máquina do entretenimento hollywoodiana, ainda pré-Segunda Guerra, botar nas telonas a história do jovem estudante de direito apaixonado pela milionária cortesã que, apesar de sua fortuna, ainda é posta à margem da sociedade francesa.

Na pele de Marguerite, a estrela sueca Greta Garbo angariou uma de suas melhores e mais aclamadas interpretações, lhe rendendo uma segunda indicação ao Oscar, prêmio esse que jamais receberia por suas atuações no cinema.

Outras muitas adaptações cinematográficas e teatrais foram produzidas ao longo dos anos, mas foi esta, estrelada por Garbo, que realmente marcou a memória do ator Roberto Cordovani, sagrado o primeiro ator a dar vida a estrela do cinema nos espetáculos Garbo Divina (1987) e Olhares de Perfil – O Mito Greta Garbo (2001), onde utilizava da figura da atriz para discutir temas como a ambiguidade e os pré-conceitos formados pelos estereótipos da indústria do cinema.

Garbo Divina | Foto: Divulgacao
Garbo Divina | Foto: Divulgacao

“A Greta não era uma grande atriz, mas era um ícone, e a indústria utilizou muito disso. Ela não era aquela figura que vendiam, era uma mulher que se vestia de uma maneira muito masculina, muito pouco ligada a esse mito sexual”, conta o ator que se inspirou na artista para poder se debruçar no livro de Alexandre Dumas Filho do qual Cordovani tirou aquilo que considerou de melhor e transformou em sua própria A Dama das Camélias, peça ora em cartaz em São Paulo desde o dia 03 de agosto na Sala Laura Cardoso do Teatro West Plaza, na Barra Funda, zona oeste da capital.

“É uma adaptação focada mais no livro original do que na peça, porque ela tinha uma dramaturgia meio antiga em que as personagens falavam da protagonista, para que quando entrasse em cena já se soubesse dela. A minha não. Está adaptada para quatro personagens, inclusive”, conta o ator, diretor e encenador paulistano radicado na Europa desde o final da década de 1980.

Sob sua própria direção, Cordovani criou uma forma mais enxuta e direta para tratar das questões que permeiam a obra original de Dumas. “Eu tinha muito medo dessa coisa melada do amor, porque quando se fala em amor tem muitas frases feitas. Isso na canção popular, na teledramaturgia, em todos os lugares. Eu tirei os ‘eu te amo’, os ‘eu não vivo sem você’, porque isso ninguém precisa mais ouvir, e tirei os beijos e abraços, que eram muitos, e os perdões, porque ela pede muito perdão a Deus, e isso é muito dos tempos dela, porque ela é uma prostituta que se pune muito moralmente”, conta o profissional que, mesmo enxugando excessos, garante ter mantido a essência da peça.

“Na minha adaptação tem tudo isso, mas não tão dito. A montagem é minimalista, não tem cenário, mas tem figurinos de alta costura. Somos trajados a rigor, o que acaba dando uma ambientação melhor ao espetáculo”, garante.

Isadora Duncan - A Revolução da Dança | Foto: Divulgação
Isadora Duncan – A Revolução da Dança | Foto: Divulgação

Embora não seja sua primeira personagem feminina (o ator já interpretou, além de Garbo, a ex-primeira dama da Argentina, Eva Duarte de Perón, a bailarina Isadora Duncan, e Myrna, personagem fictícia pela qual o dramaturgo e cronista Nelson Rodrigues respondia correios amorosos na rádio), Marguerite é a primeira clássica, e também põe Cordovani em um papel inédito, sendo o primeiro homem a interpretar a cortesã. Se houve algum receio de represálias, contudo, o ator responde com inabalável negativa.

“Eu não tive medo nenhum. Na verdade, quando eu estou inserido num projeto, nem sei que sexo eu tenho. O que importa é o texto, ele tem que bater, tem que ser uma coisa brutal. Um bom texto para interpretar me motiva e me faz sair do eixo, e isso independe de cor, sexo ou o que seja”, conceitua.

Prestes a iniciar as gravações da série As Quatro Estações, Cordovani experimentou o gosto do sucesso televisivo em 2017, quando deu vida ao senhor de escravos Sebastião Quirino na novela das 18h da Rede Globo, Novo Mundo. Entretanto, o sucesso na novela, garante, não lhe dá subsídio garantido de púbico.

“Eu já vi tantas atrizes com rosto tão marcado na televisão sem público no teatro. Depende muito do que os meios de comunicação vão passar para o público. Mas isso da TV, acho um mito, porque no ano em que eu fazia Novo Mundo, estava fazendo Isadora Duncan no teatro, e tinha anúncios na programação da Globo, e nem por isso tinha um grande público. Alguns dias tinha muita gente, outros dias não, mas para quem acompanha minha carreira, independente da TV, vai vir por outros trabalhos que fiz”, pontua.

A Dama das Camélias | Foto: Marcus Castro
A Dama das Camélias | Foto: Marcus Castro

Outra questão levantada pelo ator é um fato geograficamente cultural na cidade de São Paulo. “Percebo que a cidade ficou muito bairrista, sabe? As pessoas não vão muito além dos seus bairros para ir ao teatro. Quem mora na Mooca, vai ao teatro da Mooca, quem mora em Santana, vai ao teatro em Santana e assim por diante, e eu tive uma preocupação com isso quando fui escolher o teatro para trazer o espetáculo”, diz o ator, o que continua: “O que me dá uma tranquilidade é que o teatro é dentro de um shopping. Isso dá estabilidade para o público que não precisa se preocupar onde vai estacionar, se quiser comer antes ou depois, com ali, pode passear enquanto espera, enfim, tem essa facilidade, e tudo isso ajuda, mas não garante nada”.

Enquanto cumpre a temporada até o dia 29 de setembro, Cordovani também arquiteta novas temporadas do espetáculo em São Paulo, enquanto pretende levar a peça para outras cidades, tanto do interior do Estado, quanto para outras capitais. “É um espetáculo muito delicado, mas paradoxal. É uma delicadeza com muita força, e o público sai muito emocionado, é uma peça que fala e toca a todo mundo”, avisa o profissional que permanece no Brasil com a peça até novembro ou dezembro de 2019 antes de sair por cidades da Europa em uma turnê que teve início com a estreia em Portugal, antes de chegar ao Brasil.

A Paixão Segundo Nelson - Uma Farsa Musical Brasileira | Foto: Divulgação
A Paixão Segundo Nelson – Uma Farsa Musical Brasileira | Foto: Divulgação

Entretanto, embora esteja imerso no universo clássico de Dumas Filho, Roberto Cordovani mantém as antenas ligadas, e pretende buscar por novos autores que tenham interesse em ver seus textos montados na Europa e mesmo no Brasil. “Tem autores que eu adoraria montar, e nunca faço porque é muito caro. Adoraria que novos autores me procurassem. Eu adoraria ter autores brasileiros novos, pulsantes, que quisessem criar comigo uma parceria para estrear aqui e na Europa”, diz o ator, que busca nos textos a mesma pulsação que o inspirou a montar o atual espetáculo.

“O que mais me chama a atenção é a palavra ainda como o grande link para as relações. Por isso não quis pôr um beijo ou um abraço, e fiquei com o peso da palavra. Hoje em dia, nós escrevemos mais que antigamente, e mesmo assim as relações estão cada vez mais frias e diluídas. Então, eu creio que restaurar a palavra mostre que a relação não é só virtual. Para as pessoas chegarem a um embate sexual, é preciso a palavra. Há quem mande nudes só por mandar, mas há quem precise da palavra. E isso é o mais importante para mim e para A Dama das Camélias: a palavra, e como o amor de 1800 e o de hoje são iguais, com a mesma miséria, os mesmos preconceitos, os mesmos tabus, os mesmos dilemas de entrega”, acredita o artista, que enxerga nas relações uma dificuldade baseado no medo.

“A coisa é: até que ponto eu posso me entregar sem ser mal interpretado? Isso me chama muito a atenção, porque quando o público estiver sentado na plateia vendo aqueles atores com roupas antigas falando aquele texto, eles vão ver que já falaram isso, ou vão falar ou estão falando. É um espetáculo de inclusão para deficientes do amor. A Marguerite se sente à margem. E isso é muito atual. Nós todos estamos muito marginalizados na afetividade. As pessoas ainda têm a necessidade de que o sentimento seja bem interpretado. Todo mundo quer casar, construir, constituir, e isso é muito bonito, mas querem fazer isso sem nunca ver como a outra acorda, sem ver a outra sem roupa, sabe? A Dama das Camélias é muito atual da forma que está colocada”, finaliza.

A Dama das Camélias cumpre temporada na Sala Laura Cardoso do Teatro West Plaza, no Shopping West Plaza, na Barra Funda, zona oeste da capital, até o dia 29 de setembro, de sexta-feira a domingo, às 18h (sextas), 21h30 (sábados) e 19h (domingos), com ingressos de R$ 40,00 (meia) a R$ 80,00 (inteira).

A Dama das Camélias | Foto: Marcus Castro
A Dama das Camélias | Foto: Marcus Castro

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