Grande expoente do besteirol, Jorge Fernando teve papel essencial na pavimentação dos musicais e da comédia moderna

Jorge Fernando | Foto: Divulgacao

É sintomático que a figura de Jorge Fernando (1955 – 2019) seja associada, nos obituários que o homenageiam em sua (precoce) saída de cena, na noite de domingo, 27, vítima de uma parada cardíaca apś ser internado para tratar de um aneurisma dissecante da aorta completa, ao trabalho que desenvolveu em frente às novelas da Rede Globo, principalmente, na faixa das 19h.

De fato, nas mãos de Fernando, o horário se tornou sinônimo de uma comédia leve e descompromissada que ajudou a fomentar a linguagem cômica em meio ao melodrama dos folhetins correntes na teledramaturgia brasileira até a década de 1980.

Nas mãos do diretor, a TV viu dois símbolos máximos das artes cênicas brasileiras numa lendária guerra de comida, quando Silvio de Abreu escreveu que Fernanda Montenegro e Paulo Autran (1922 – 2007) deveriam se lambuzar com o café da manhã de Guerra dos Sexos (1983), aquela que se tornou uma das cenas mais emblemáticas da TV brasileira, gravada por Jorge Fernando em único take.

Também foi do diretor o responsável por dar o tom de pastelão melodramático a Brega & Chique (1987), novela que marcou o retorno de Marília Pêra (1943 – 2015) às telinhas da Rede Globo e se sobressaiu como um dos maiores sucessos da rede na década, além de ser o responsável pela linguagem de tantos outros títulos icônicos, como o clássico Que Rei sou Eu (1989), a fantasiosa Vamp (1991) e, claro, o thriller A Próxima Vítima (1995), essa já na faixa das 20h.

Jorge Fernando na novela Ciranda Cirandinha (1978)

Entretanto, é sabido que essa linguagem surgiu na vida do ator através das comédias que encenou no teatro. Egresso da explosão do besteirol do teatro carioca, Fernando foi parceiro de grandes expoentes do gênero ao longo do final da década de 1970 e toda a década de 1980, como Miguel Falabella, Guilherme Karan (1957 – 2016), Eduardo Martini, Luiz Carlos Góes (1945 – 2014) e, claro, toda a turma do seminal Asdrúbal Trouxe o Trombone.

Foi tendo pleno domínio desta linguagem da comédia besteirol, longe das clássicas comédias francesas e inglesas que tomaram os palcos brasileiros entre as décadas de 1950 e 1960, que Jorge Fernando construiu carreira teatral tão sólida e importante quanto a televisiva desde que estreou em 1976 na comédia A Rainha Morta, de Heloísa Maranhão, dividindo a cena com nomes como Zezé Motta, Rosita Thomaz Lopes (1920 – 2013) e Elke Maravilha (1945 – 2016), de quem extraiu a personalidade espalhafatosa.

Passou, então, a brilhar e se tornou programa obrigatório nos teatros cariocas. O sucesso de As Gralhas (1978), de Bráulio Pedroso (1931 – 1990) sob a direção de Marcos Paulo (1951 – 2015), com quem tomou aulas de direção e, dois anos depois, pôs em prática ao assinar a primeira direção teatral em As 1001 Encarnações de Pompeu Toledo (1980), de Marcus Alvisi e Vicente Pereira (1949 – 1993), onde se conectou permanentemente com atores de sua geração.

Rio Gay (1983)
Rio Gay (1983)

Nesta primeira encenação estavam nomes como Diogo Vilela, Stella Miranda e o próprio Alvisi, entre outros. Celebrado nas rodas cariocas, dirigiu outros espetáculos ao lado de seus colegas de geração até, em 1983, então já respeitado como diretor televisivo, receber o convite para conduzir e escrever, com Vicente Pereira, Rio Gay, espetáculo de revista estrelado pela divina diva Rogéria (1943 – 2017).

Ao longo dos anos, Fernando jamais abandonou o teatro, tendo assinado a direção de espetáculos importantes, como a reencenação de Fica Comigo Esta Noite, de Flávio de Souza, em 1990, com Débora Bloch e Luís Fernando Guimarães na pele do casal Laura e Edu, que, após a morte dele, comove o público com uma discussão de relação para além da matéria.

Fica Comigo Esta Noite (1990)

Também pelas mãos do diretor estreou Solidão, A Comédia, um dos clássicos da obra de Vicente Pereira que, além de ficar anos em cartaz com o autor em cena, foi o espetáculo responsável por chancelar a carreira de outros atores, como Maurício Machado.

A Estrela Dalva (1987)

Entretanto, para além do clássico besteirol, Jorge Fernando também foi figura tão essencial quanto esquecida para a revitalização do teatro musical no Brasil. Em 1987, dirigiu Marília Pêra na inesquecível montagem de A Estrela Dalva, na qual a atriz deu vida a Dalva de Oliveira (1917 – 1972) e arrebatou até mesmo o compositor Herivelto Martins (1912 – 1992). Foi pelas mãos de Jorge Fernando que o espetáculo se tornou um dos maiores sucessos da carreira de Pêra, e ajudou a consolidar o nome de atores então estreantes, como Sylvia Massari.

Em 1993, assinou a clássica montagem de Hair, que trouxe à luz atores que fariam parte do alicerce do novo teatro musical brasileiro, como Thalma de Freitas, Andrea Marquee e Débora Reis. No ano seguinte, deu régua e compasso para Tuca Andrada estrelar Rocky Horror Show, montagem que contou Marcelo Novaes, Cláudia Ohana, Léo Jaime, Carlos Leça e Tânia Nardini, entre outros.

No mesmo ano, dirigiu a clássica primeira versão brasileira de A Gaiola das Loucas, com Jorge Dória (1920 – 2013) e Carvalhinho (1927 – 2007), e deu prosseguimento às experimentações de Cláudia Raia em seu espetáculo de revista Nas Raias da Loucura. Com o tempo e a transformação do gênero, deixou o teatro musical e se fixou na TV, tendo retornado a linguagem que o sagrou, propondo experimentações cênicas e voltando aos musicais brevemente apenas em 2017, quando assinou a direção geral de Vamp – O Musical.

Nas Raias da Loucura (1995)

Como ator, voltou à cena para divertir com a vanguardista comédia Boom (1999), e conseguiu tempo para, aos 35 anos de carreira, estrear espetáculo revisionista, Salve Jorge… Fernando! (2012) que, ao longo de um ano, foi a mais perfeita tradução de seu revisado: inteligente, alegre e bem humorado.

Na cinema e na TV, Jorge Fernando foi um homem de vanguarda que, mais do que quebrar paradigmas e promover inovações e renovações, levou ao pé da letra a máxima da letra de Rita Lee: fez um monte de gente feliz.


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