O Tapa sobrevive há 40 anos porque se miscigenou, analisa Eduardo Tolentino, em cartaz com nova peça

Eduardo Tolentino de Araújo | Foto: Divulgação

Tradicional grupo carioca, radicado há 34 anos em São Paulo, o Tapa se tornou uma das mais importantes e constantes companhias brasileiras sob a batuta incansável do diretor e encenador carioca Eduardo Tolentino de Araújo.

Com uma gama invejável de encenações ao longo da história, o grupo construiu repertório que passeia pelos clássicos da dramaturgia mundial, desde o inglês William Shakespeare, até o trágico carioca Nelson Rodrigues, passando ainda por nomes como o russo Antón Tchékhov, o francês Jean Tardieu, o norueguês Henrik Ibsen, o italiano Carlo Collodi o maranhense Arthur Azevedo e os cariocas Martins Penna, Vianinha e Domingos de Oliveira.

Agora, após celebrar 40 anos de existência com a encenação de O Jardim das Cerejeiras, de Anton Tchékhov, em 2019, grupo retorna a um de seus autores mais visitados, o sueco August Strindberg, de quem encenam Brincando com Fogo, peça escrita entre 1892 e 1897, que estreou no Teatro Aliança Francesa na última quinta-feira, 09.

“Eu sinto que falamos de algo muito importante. É uma peça teoricamente escrita em 1897 sobre uma relação aberta. A grande questão que ele mostra ali não é moral, mas sim a de que tudo vale desde que você não se apaixone, não quebre o acordo. Quando a gente mexe com Ibsen, estamos falando de um mundo burguês em sua essência, são bancários, professores, pastores, mas no Strindberg são todos artistas. São burgueses boêmios dentro dessa bolha progressista, pessoas teoricamente transgressivas. Então, o que ele vai colocar nesse espetáculo é que o problema são as relações humanas. Você pode ser transgressivo o quanto for, não é esse o problema, não há julgamento moral, há a figura de um grupo que perde a noção dos seus impulsos, instintos e sentimentos e precisam lidar com a consequência disso. Ele é pré-sartriano”, conceitua Tolentino que acredita conseguir se conectar com a contemporaneidade através da montagem.

“Eu sinto que nós mudamos no nosso comportamento, mas não na forma de se relacionar. A peça trata um pouco disso de alguma forma, mas com uma amplitude maior. Temos que pensar que eles são suecos e estavam muito à frente em temas como a liberação sexual, o feminismo e em muitos outros temas que a gente ainda pena, sobretudo num país de terceiro mundo, onde tudo demora a chegar, o que a gente acha aqui que é uma marolinha, daqui a pouco se torna um tsunami, mas aqui o que importa é a metáfora. A peça não se passa no século 19, nem tampouco hoje, ela está no espaço do sonho, do desejo. É isso que o Tapa busca, a atemporalidade”, diz.

O diretor lembra que, nesta busca, ao longo da caminhada, já conseguiu grandes acertos e alguns erros quanto ao contato com o público. Em pleno 2001, enquanto ensaiava Major Bárbara (1905), de George Bernard Shaw, peça sobre as relações entre armas, religião e política, aconteceu o atentado às Torres Gêmeas, em Nova York, do 11 de Setembro.

“A gente parou tudo para ver o que estava acontecendo e ali nos perguntamos: e aí, vamos mesmo fazer isso? Dar continuidade a um tema tão delicado? E fomos em frente!”, lembra o diretor que viu o Teatro Aliança Francesa com filas intermináveis na porta a cada sessão do espetáculo protagonizado por Clara Carvalho e Zécarlos Machado.

Já ao tentar retratar a chacina da Candelária, no Rio de Janeiro, em 1993, com a encenação de Querô, do dramaturgo santista Plínio Marcos, Tolentino não entendia o afastamento crescente do público. “

“Eu pensei que poderia tocar as pessoas, e elas não queriam ver. Às vezes eu sinto que quando você vai muito objetivo, você não tá olhando o que aquelas pessoas querem ver naquela situação”, explica.

Famoso por construir encenações clássicas, Tolentino não se priva, também, de olhar para dramaturgos novos. “Eu digo que estou interessado dos gregos aos marcianos. Chega muita coisa pra mim, mas é preciso filtrar um pouco, e eu penso: quero falar sobre isso? Quero tratar deste assunto agora, seja ele qual for? Qual a relevância? Claro, se tivéssemos uma companhia subsidiada pelo Estado teríamos feito muito mais coisas do que fizemos. Muitas coisas nos interessa”, diz o diretor que assinou a direção de Recordar é Viver, drama de Hélio Sussekind montado em 2011 com Suely Franco, Sérgio Britto e José Roberto Jardim, último trabalho que assinou de um dramaturgo contemporâneo

“Eu sinto que a melhor dramaturgia que se faz hoje no Brasil é para grupos específicos, por encomenda. Os textos que me caem a mão me levam ao questionamento da pertinência. Chega muita coisa boa, mas também chega muita porcaria, sabe? E é muito difícil para um país sem tradição dramatúrgica se desenvolver assim, por isso na década de 1990 fizemos 16 textos brasileiros”, relembra o diretor que continua:

“A dramaturgia brasileira sempre foi interrompida, nunca foi amadurecida. No final do século 19, o Arthur Azevedo fez suas burletas que poderiam ter aberto caminho para o teatro musical brasileiro, e não aconteceu. Já entre os anos 10 e 20, houve uma dramaturgia simbolista que poderia ter se desenvolvido e não aconteceu, e aí por diante, até que você chega na década de 1960 com a dramaturgia do conjugado, que é Plínio Marcos, Leilah Assumpção, Antônio Bivar, Consuelo de Castro, Zé Vicente, isso depois desaparece outra vez e eu sinto que não conseguimos firmar uma dramaturgia média, uma boa dramaturgia de ofício, que é o que a gente briga no Tapa”, diz o diretor.

“A gente acha fundamental cobrar ingresso, ficar em cartaz o quanto for possível pelo máximo de dias na semana possíveis. Essa coisa do ofício foi se perdendo. O sapateiro e o padeiro são mestres nos seus ofícios, e nós precisamos recuperar isso de trabalhar seis vezes na semana, não apenas três, como é no resto do mundo, assim é que se faz teatro”.

Prestes a reencontrar antigos companheiros do grupo, como Zécarlos Machado, com quem pretende montar ainda este ano Papa Highirte e Clara Carvalho, com quem vai encenar De Todas as Maneiras que há de Amar, ao lado de Brian Penido, Tolentino também acredita na necessidade de renovação para que o grupo siga em pleno movimento.

“O Tapa só sobrevive há 40 anos por que se miscigenou. Tem mulher, tem homem, tem branco, tem preto, tem jovem, tem velho, então eu acho que a grande coisa é a mistura, inclusive a ideológica. Quando saímos do Rio de Janeiro éramos um grupo de universitários que frequentava os mesmos bares, as mesmas praias, quando chegamos em São Paulo, encontramos muita gente diferente. Já estiveram no Tapa filhos de latifundiários, filhos de sem terra, pessoas que geram um conflito ideológico que gera saúde. Nós vimos no que deu a raça pura no passado. Essa mistura tira a gente das certezas e nos leva ao movimento. Aqui já teve gente do Satyros, da Praça Roosevelt, do teatro musical, ator alternativo, de tudo, e é isso que eu acho salutar e imprescindível para a nossa sobrevivência”, finaliza.

Brincando com Fogo fica em cartaz até o dia 16 de fevereiro no Teatro Aliança Francesa, na Vila Buarque, zona central da capital. As sessões acontecem de quinta-feira a domingo às 20h30 (quinta a sábado) e às 19h (domingos). Os ingressos custam de R$ 25,00 (meia) a R$ 50,00 (inteira) às quintas-feiras e de R$ 30,00 (meia) a R$ 60,00 (inteira) de sexta-feira a domingo.

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